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Comida

De mato que cresce na cerca, o ora-pro-nóbis virou até festival

Planta cheia de história em Minas Gerais, o ora-pro-nóbis estrela festival em Sabará, no interior do Estado, há 21 anos; no último fim de semana, Paladar acompanhou de perto o que os mineiros cozinham com ela

Planta que passa despercebida em quase todo Brasil tem festa própria em Minas. Foto: Tadeu Brunelli|EstadãoFoto: Tadeu Brunelli|Estadão

De Sabará/MG O escritor britânico Peter Mayle ousou afirmar no delicioso Lições de Francês que não consegue imaginar um povo, que não o da França, disposto a “dedicar um fim de semana inteiro a coxas de rã, escargôs ou à avaliação crítica de frangos”. Ele claramente não conhece Sabará. Faz duas décadas que a população da cidade vizinha a Belo Horizonte dedica um fim de semana por ano ao ora-pro-nóbis, a mais mineira das plantas. Mineirice, nesse caso, não é uma questão de origem, mas de índole. A trepadeira é tão pacata que passa despercebida em muros e canteiros de todo o País. Só em Minas é que suas folhas verdes e suculentas de textura macia e sabor delicado são mais reverenciadas na cozinha. Dos dias 4 a 6 de maio, a 21ª edição do Festival do Ora-pro-nóbis tomou conta do bairro Pompéu. 

Planta que passa despercebida em quase todo Brasil tem festa própria em Minas Foto: Tadeu Brunelli|Estadão

Em meio a vielas irregulares e cobertas de terra, os sabarenses, com sotaque manso e arrastado, se organizam em barraquinhas para vender pratos com ora-pro-nóbis. Tudo simples, feito em grandes panelas de barro e com sabor de comida de avó. Tem de tudo. Dos tradicionais refogados de costelinha ou frango até excentricidades.  Os barraqueiros, das mais diversas ocupações, aproveitam os três dias de festa para fortalecer a identidade do bairro e botar a mão na massa. Tem time de futebol, comunidade de igreja, produtores do vegetal. Inventora de uma cocada de ora-pro-nóbis, Mary Ferreira é química. “Cresci com a planta, mas a gente nunca pensou em doces com ela, então decidi inovar”, diz. Já a compradora de supermercado Juliana Oliveira criou uma farinha com a planta, que é rica em nutrientes. Ela assa as folhas em forno a lenha por 40 minutos, depois sova com as mãos. O pó vai na vitamina, no suco, no feijão, no pão caseiro. Para o festival, ela preparou carne de lata com mandioca na manteiga de garrafa, polvilhada pela farinha de ora-pro-nóbis. A Prefeitura de Sabará instituiu o Prêmio Inovação para coroar a receita mais criativa da festa. Neste ano, a seleção foi bastante heterogênea. Além da farinha e da cocada, teve acarajé com ora-pro-nóbis, pastel recheado com o vegetal, “oraproada” (feijoada de feijão branco com a hortaliça e cortes suínos). Ganhou a bocata de ora-pro-nóbis, um pãozinho recheado com queijo, ora-pro-nóbis e pimenta biquinho.

Ora-pro-nóbis, em latim, quer dizer “rogai por nós”. Não se sabe como a planta recebeu esse nome, mas conta-se que nos tempos coloniais suas moitas cercavam a igreja de Sabará, porém o padre não permitia que fossem colhidas. Os escravos eram instruídos a esperar os horários de oração para pegar as folhas, quando padre e fiéis estavam voltados aos céus.  Prestígio. O festival acabou despertando o interesse pelas folhas que sempre fizeram parte da alimentação no Estado, sem qualquer reverência. Era coisa simples, de fundo de quintal. As folhinhas foram ganhando pratos de adultos e crianças das famílias mineiras e, nutritivas e de nome curioso, ultrapassaram as fronteiras. Em São Paulo, a folha também anda sendo celebrada. Já compôs menu sazonal do Tuju, de Ivan Ralston, que acaba de receber a segunda estrela no guia Michelin. Atualmente, o ora-pro-nóbis está no recheio da empanada “mineira” do La Guapa, a casa de empanadas da chef Paola Carosella.+Empório solidário de orgânicos no Centro tem foco no produtor+Biblioteca na Bélgica cataloga fermentos vivos de todo o mundo   Mas não é só em restaurantes que se consegue encontrar a folha por aqui – alguns hortifrútis e empórios vendem ora-pro-nóbis. No empório Solli, em Pinheiros, o maço custa R$ 6,99 e o pó, R$ 29,90. E como a planta cresce facilmente – na verdade ela vai tomando conta do lugar –, pode ser uma boa ideia seguir as dicas da colunista do Paladar Neide Rigo. Ela diz que é bem fácil plantar: basta enterrar um galho e esperar.

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A criadora do festival

Se a origem do nome é cercada de mistérios, a identificação do povo de Pompéu com o vegetal tem nome e sobrenome: Maria Torres. Aos 88 anos, a matriarca que ainda mexe as colheres de pau do seu restaurante, o Moinho D’água, foi a responsável pela criação do festival. No final dos anos 1990, a cozinheira foi desafiada pelo prefeito da cidade a criar um prato com a planta que insistia em crescer nos muros de sua casa. Usou o que tinha no quintal: ora-pro-nóbis e marrecos. Fritou a ave e depois cozinhou-a na pressão. Usou o caldo do cozimento para refogar as folhas picadas. Ficou tão bom que ela apresentou o prato no Festival de Cachaça da cidade. O sucesso foi tamanho que ela usou todas as aves da família Torres e, para continuar servindo o prato, teve de adaptar, usando frango e costelinha. Depois desse episódio, ela virou a embaixadora do ora-pro-nóbis e não descansou até criar o festival.

Dona Maria Torres, a matriarca do ora-pro-nóbis Foto: Matheus Prado|Estadão

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Leo Paixão faz ode à mineirice

O chef

Leo Paixão

, dono do restaurante Glouton, um dos mais aclamados de Belo Horizonte, conta que aprendeu a gostar da folha na infância, assim como de outras mineirices como a maria-gondó, a serralha e a taioba, que sempre estiveram no seu prato. E colocou as folhas também no cardápio do seu restaurante, em receitas variadas conforme a temporada. Atualmente, tem ora-pro-nóbis em um prato vegano, composto de berinjela gratinada com missô e servida com creme de grão-de-bico e arroz negro selvagem. Leo, que se formou em medicina antes de estudar gastronomia, explica que gosta de trabalhar restrições alimentares, um desafio extra para quem pensa em sabor, e que graças ao poder nutricional da planta ela pode ser um bom substituto às proteínas animais. Para dar textura crocante, ele seca as folhas na chapa. Estaladiças, elas são dispostas com uma pinça sobre o creme. 

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Berinjela gratinada com missô, creme de grão-de-bico e arroz negro selvagem Foto: Matheus Prado|Estadão

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