Cotidiano

Tem alimento não convencional na merenda da garotada

Ali logo se vê que quem manda mesmo é Irene e Mari. Na cozinha impecável onde é feita a refeição para 600 crianças de segunda a sexta-feira tem um novo prato sendo preparado. Trata-se de um projeto – pelo que se tem conhecimento pioneiro – para a merenda escolar em todo o Estado do Paraná.

A regra naquele recinto e que já se expande pelos corredores da escola é descascar mais e desempacotar menos, cada vez menos. Do lado de fora da cozinha a fila já contava com 22 crianças do 2º ano, todas na faixa dos seis anos de idade, que esperavam ansiosamente pelo experimento da semana.

Enquanto elas se prepararam para colocar as toucas e entrar na cozinha, do lado de dentro as merendeiras explicavam a receita fantástica do bolo do Incrível Hulk, verdinho, e que depois de ingerido resulta em músculos incríveis.

Assim a guloseima foi apresentada pela primeira vez às crianças na frente da nossa equipe de reportagem.

A nutricionista Josiane da Silva Thomas não negou que estava ansiosa e aflita: “E vai que as crianças não gostem.”

Mas como algo feito com tanto amor, tão rico e nutritivo poderia dar errado? Pois é, não deu.

O capricho na Escola Municipal Presidente Médici, a única em Entre Rios do Oeste, é de se notar desde antes do portão de entrada. Bem pintada, bem cuidada, limpa, jardim organizado, uma daquelas estruturas que a gente logo se pergunta: por que todo prédio público não é assim?

Do lado de dentro se nota que os cuidados vão muito além da estrutura física. As pessoas se importam uma com as outras, com a saúde dos pequenos, com as famílias e de um futuro nutricional mais próspero para todos.

Na mesa da cozinha o preparo do dia envolve as chamadas Pancs, sigla para plantas alimentares não convencionais. Aquelas ricas em nutrientes, fartas nas plantações afora e até então pouquíssimo usadas na alimentação humana, mas já com uma vasta bibliografia e muita pesquisa sobre suas propriedades nutritivas.

A receita do bolo do Hulk inclui a ora-pro-nóbis (rogai por nós), planta riquíssima em proteína, conhecida como a “carne dos pobres”, além da farinha da moringa, aquela árvore gigantesca que muita gente tem no quintal de casa e não faz ideia que é comestível e tão rica em nutrientes. A receita completa você acompanha no fim desta reportagem. Quem fizer não vai se arrepender.

 

Por que as Pancs na merenda?

Mas por que levar as Pancs para a merenda escolar? Este tem sido um projeto audacioso, coordenado pela sociedade cooperativa Bilabore com atuação em 22 municípios da região oeste do Paraná. O objetivo é estimular a agricultura orgânica e familiar, aliás, são os agricultores familiares os grandes fornecedores dessas riquezas naturais que enriquecem o prato da criançada.

A técnica da cooperativa, a zootecnista por formação Cristiani Cavilhão, lembra que, numa região onde literalmente se bebe agrotóxicos em um dos traçados produtivos do Estado onde mais se usa veneno nas lavouras, era preciso pensar em propostas que vão na contramão desse envenenamento humano massivo, uma tentativa de permeabilização da produção do bem.

Em parceria com a Itaipu Binacional a partir do contrato de desenvolvimento rural sustentável, esses são os primeiros passos práticos desde o estudo das plantas, o plantio propriamente dito até o consumo final.

O que está sendo feito em Entre Rios do Oeste é uma espécie de projeto-piloto. Por lá toda a população – cerca de 4,5 mil habitantes – está envolvida com o ingresso das Pancs na alimentação escolar. Ou são as crianças que provam, gostam e pedem para os pais fazerem em casa, ou são os pais que multiplicam para parentes e amigos, ou os educadores, que disseminam a ideia, ou ainda os produtores, como é o caso do Sítio dos Ipês, uma floresta agroecológica daquelas que dá gosto de se ver. Parte dos produtos fornecidos nos projetos experimentais da merenda sai dali.

 

O preparo de quem prepara

Desde o início do ano as merendeiras estão sendo preparadas para o ingresso gradativo das Pancs na alimentação as crianças com capacitações constantes. Oficialmente, as plantas alimentares não convencionais ainda estão em teste, tanto nas receitas quanto na aceitação pelo paladar das crianças. Mas ali ninguém tem dúvidas de que em breve elas serão figurinhas carimbadas nas refeições, ao menos uma vez por semana.

Além dos ingredientes testados exclusivamente para a reportagem no bolo doce, há ainda a biomassa da banana verde, coração e miolo do tronco, além da moringa e do ora-pro-nobis, as estrelas do bolo em questão. São todos alimentos que aos poucos se tornam um verdadeiro sucesso entre a criançada.

Sujeitos à aprovação

Em fila, as crianças são chamadas para dentro da cozinha. Ivone Kaiser e Rosimari Depper, as merendeiras com 23 e quatro anos de envolvimento com a garotada, respectivamente, preparam o bolo e explicam o passo a passo. Olhos e ouvidos atentos, os estudantes deixam escapar da boca “vou pedir para a minha mãe fazer”.

Enquanto Ivone coloca os ingredientes no liquidificador, silêncio absoluto no recinto. Todos queriam saber como era possível um punhado de folhas verdes de um nome que eles nem sabem pronunciar, a ora-pro-nóbis, virar um bolo incrível verde.

Depois da massa pronta, Irene despeja o conteúdo numa forma e 25 minutos depois eis que estava lá, o bolo com a casquinha marrom, que parecia de chocolate por fora e o interior verdinho.

Resistência para provar? Nenhuma.

Assim que ele foi cortado as crianças levaram a mão direita para frente do corpo indicando o desejo de saborear. Logo o que estava dentro da forma foi diminuindo, diminuindo, diminuindo… até que só restaram migalhas.

Ousei perguntar a elas o que haviam achado. Como rege a boa educação, algumas pediram para esperar um pouco enquanto mastigavam, outras foram logo se atropelando, entusiasmadas com a incrível experiência. “É maravilhoso, adorei”.

Logo a fila se formou mais uma vez. Eles queriam um segundo pedaço.

Dos 22 da turma, o que apresentou resistência foi convencido pelo colega ao lado. “Come que é bom”. Não é que ele comeu, gostou e repetiu? “As crianças têm muito menos resistência, menos preconceito e elas gostam do lúdico para a alimentação. Isso significa que, se houver uma historinha com os alimentos, eles se apropriam muito mais do que está sendo servido e levam essa experiência para casa”, avalia a nutricionista Josiane.

“Eu achei isso incrível. Adorei e vou pedir para a minha mãe fazer”, afirmou Renan.

Foto: 04 e 05 plantas nao convencionais _as_ (48)

Legenda: A aprovação foi unanime e as crianças pediram para repetir o bolo feito com as pancs

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Hora de provar

Para que pudéssemos provar também, a tia Ivone teve que pedir para a garotada esperar um pouquinho antes de avançarem sobre o próximo pedaço. Comi e gostei, muito. Aquela também foi uma experiência nova para a equipe. E só não repetimos para não deixar as crianças sem.

O desafio do sabor dos alimentos não convencionais na alimentação escolar é um dos processos que vêm sendo trabalhados para melhora do cardápio.

O foco está na diversificação das receitas e no aprimoramento de cada uma delas. De Entre Rios, o que se espera é levar a ideia para outros cantos do Estado. O objetivo é para que no segundo semestre ao menos uma vez por semana as plantas alimentares não convencionais sejam servidas ali na merenda.

Estudo, pesquisa e nutrição

A zootecnistya da Biolabore (Cooperativa de Trabalho e Assistência Técnica do Paraná) Cristiani Cavilhão destaca: é um trabalho de formiguinha, muito suor, estudo e trabalho. Ela reforça que nada é levado para a mesa ou oferecido às crianças sem estudos, muita pesquisa e a certeza de que são alimentos ricos, nutritivos e completamente apropriados para a alimentação humana. “Hoje estamos voltados à agricultura orgânica, à valorização do produtor, à valorização do alimento e da saúde. Tanto é que a Apoer [Associação de Produtores Orgânicos de Entre Rios do Oeste] já conta com 85 produtos vendidos pelos associados, desde frutas, hortaliças até as Pancs”, relata.

O envolvimento e a assistência dada pela Biolabore aos cooperados têm se voltado cada vez mais ao preparo da terra, ao plantio e aos cuidados com os cultivos até a venda.

Levar as Pancs para a alimentação escolar aparece como um desafio ainda mais ousado. O que se espera mesmo é que, em pouquíssimo tempo, as plantas alimentares não convencionais estejam no prato de todos, sem preconceitos, sem resistência, com segurança alimentar e nutricional em prol de uma vida mais saudável, mais ativa e com menos envenenamento humano. “Sim, isso é possível”, completa.

Receita do bolo do Hulk

5 ovos

Meio copo de água

Um copo de açúcar

Uma colher de óleo

Meio copo de farinha de milho

Um copo e meio de farinha de trigo

Oito folhas de ora-pro-nóbis

Meio copo de farinha de moringa

Uma colher de fermento em pó

Modo de preparo

Refoge as folhas da ora-pro-nóbis com água por um ou dois minutos, misture com os demais ingredientes no liquidificador e bata até ficar consistente. Despeje tudo numa forma untada e leve para o forno pré-aquecido e deixe assar por 25 minutos em temperatura média.

Rendimento: 30 pedaços

Foto: 04 e 05 plantas nao convencionais _as_ (30)

Legenda: Simples, fácil, rápido e nutritivo: o bolo verde que a criançada aprovou para a merenda escolar